segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Doce infância

Brincar na casa da avó Maria quando pequena era a coisa mais fantástica que Olivia achava. Ela separava minuciosamente as suas bonecas e lhes contava que naquela tarde elas ganhariam roupas novas e coloridas.

Primeiro, a vó Maria lhe ensinava a segurar a tesoura com cautela, a medir o tamanho do tecido corretamente para aquele vestido ou tomara que caia, e lhe descrevia, pacientemente, a colocar o fio na agulha e a costurar cada peça de roupa para a festa que haveria aquela noite na casa de Carmem – a boneca inseparável de Olivia.

Depois das roupas prontas, Olivia penteava os cabelos de suas bonecas e as colocava para descansar enquanto ia ao jardim colher flores e terra.
Terra? Sim, neste momento, vó Maria já havia separado a peneira, a água e o pote de Doriana para que Olivia preparasse o bolo que seria servido aos convidados.

Nunca houveram momentos mais agradáveis do que este, cada qual executando as fantasias de brincadeiras de criança.
É nestes tempos que Olivia se transporta quando visita sua avó, agora tão mais enrugada, pequena e com menos saúde do que naquela época.

São estas as impressões que Olivia sempre guardará a sete chaves em seu coração e em sua memória, pois representam o mais infantil e o mais adulto amor que alguém pode sentir. E não estranhem se um dia, mesmo com um quarto de século, virem Olivia sentada no jardim peneirando terra e preparando o bolo de barro mais gostoso que já existiu, para sua avó Maria.

domingo, 14 de setembro de 2008

Até a volta

Maria é muito sonhadora. Vive no mundo da lua, pulando de nuvem em nuvem, imaginando e planejando cada segundo de sua vida.
Quantas vezes alguém precisava lhe dar um tapinha nas costas para ela voltar a Terra, ou ela se assustava com o barulho do telefone. Só que dessa vez era ele, aquele homem que ela conhecera de forma inusitada e sempre tão misterioso.

Impressionante como cada um de seus poros se arrepiava e como seu coração acelerava ao escutar aquela voz dura e ao mesmo tempo doce do outro lado da linha. Por que às vezes tudo se camufla e se embaralha quando os sentimentos começam a vir à tona? Por que as pessoas se seguram e se fecham em suas almas, como se quisessem se enjaular como forma de proteção, daquele monstro que vem em sua direção às pressas, mas que te devora pouco a pouco? Por que, meu Deus, as pessoas têm medo de amar e de entregar?

Pois era assim que Maria pensava e sentia, querendo se jogar com toda a força e dizer o quanto ela era feliz e completa quando Pedro estava ao seu lado. Porém, Pedro não dava muitas aberturas à Maria, o que a deixava insegura e calada, sem saber se ela estava sendo correspondida, mas de forma mais tímida; ou se Pedro estava usando uma máscara e brincando com seus sentimentos, o que a alertava de que um grande sofrimento estaria por vir.

É engraçado como ele repara em suas roupas, se ela cortou o cabelo, mudou a cor do esmalte ou o perfume, que sempre impregnava nas roupas e lençóis dele, e que de qualquer forma, fazia com que Maria sempre estivesse presente.

Ele ligou para dizer que estava com saudade. Assim como tantas vezes que a surpreendeu quando ela achava que ele lhe escapava pelas mãos. Mas ela não acreditava que alguém que dissesse essas coisas e mantinha contato todos os santos dias, poderia estar de brincadeira ou ser tão frio e calculista.

Saudade... Sentimento que exprime qualquer vazio e faz com que você materialize a pessoa à sua frente e logo corra para aquele abraço gostoso, onde se pode sentir o calor e a segurança de braços fortes, além do cheiro de chiclete de canela, característico de Pedro, e que Maria tanto gostava.

Mais uma vez ele a deixou nas nuvens, minutos de felicidade plena que lhe tirariam horas de sono.
Ela sentia que ele era inconstante demais, e que estava na hora de controlar seus sentimentos, seus pensamentos e impulsos, e encarar os fatos de forma mais analítica e fria, tal como resolver cálculos matemáticos. Ora, como se fosse fácil!
“Pise no freio” ou “mande-o para o Alaska”, diziam seus melhores amigos em forma de conselho, mas talvez, mesmo em tão pouco tempo de convivência, fosse tarde demais. Ela estava apaixonada, perdidamente apaixonada.

Não havia mais nada que Maria fizesse, até mesmo quando comprava roupas, livros ou sentia o cheiro de terra molhada, que não se lembrasse ou incluísse Pedro no meio. Já fazia parte do seu dia-a-dia.
Inúmeras vezes ela olhava o celular, estralava os dedos ou alisava as pontas de seus cabelos com os dedos, compulsivamente, esperando uma nova ligação, um próximo encontro.

Mas um dia, Pedro lhe ligou e apesar de coisas boas, lhe disse que aceitara a proposta de ser diretor de arte em Amsterdam. Desde então, os olhos de Maria ficam marejados, seu coração apertado, mas tão apertado que chega a lhe faltar ar, ou doer. E como seu sorriso ficou amarelo.

Quando Maria pedala – seu exercício preferido, ela faz com toda força e pique, como se quisesse por para fora de sua pele com aquele suor, todas as lembranças, toda aquela dor, todo aquele vazio.
Foi aí que sua insônia acabou, pois somente dormindo ele aparecia nos seus sonhos. Com aquele sorriso lindo que fez ela se apaixonar logo de cara e com aquela felicidade que ele sentia ao vê-la rodopiar com seu vestido florido e alças de cetim.

Somente assim Maria conseguia ter ele por algumas horas, e descobriu que mesmo tentando se segurar, já o amava. Pois não tinha como esconder o sofrimento, a dor e o medo. Mas foi o amor mais puro e sincero, que em vinte e quatros anos, Maria nunca sentira.

Mas sua pior agonia é que Pedro se foi, e ela não conseguiu descobrir quais eram suas intenções e seus verdadeiros sentimentos por ela. Ele se foi ainda envolto em sua concha, talvez por algum trauma do passado. Por isso, Maria continua a pedalar, e seu sorriso continua amarelo.

Arroz e Feijão

Ele a conhece no teatro, mas ela não sabe de sua existência. A distância entre a terceira fileira e o palco é grande, e uma bailarina não pode se dar ao luxo de uma distração, ou tudo dará errado.
Ele pensa, enquanto ela dança: “É uma estrela? É mentira? É comédia? É tragédia? É pintura?” O rosto da bailarina que dança feliz...
Seus pensamentos estavam tão presos na imagem dela, que passou a imaginar a forma do seu corpo sem a fantasia.

De espetáculo em espetáculo, os dias se faziam cruéis demais para passar. Sua rotina passou a incluir idas freqüentes àquela peça, estudos de interpretação, pesquisa sobre todos os espetáculos em que ela já atuara e, pasmem, aulas de ballet.

Sim, ele se matriculou numa escola. Tudo pelo amor. Tudo para dançar com ela. Tudo para ao menos conhecê-la de perto e dizer: “Me ensina a não andar com pés no chão.”

O tempo passara, o amor aumentara e sua evolução na dança já se fazia grande. Chegara então a época da bonança: ele conseguiu seu primeiro teste.
Mãos frias, suadas, calça apertada (ui, que coisa esquisita para um homem tão viril), gestos delicados (hã?), concentração, respiração... E ele pensou: “Tem que ser muito homem para fazer isto aqui.”
Mas foi. As cortinas se abriram e lá estava ele. Era sua chance!
Foi quando ele fez o que não podia - prestar atenção em quem o observava! Ela estava lá. Ela era sua avaliadora e, coitado, o nervosismo foi tanto que todo seu esforço foi em vão.
Ele não sentia suas pernas e não conseguia fazer a coreografia. A admiração e o espanto foram tão grandes que ele apenas parou e ficou sorrindo para ela, como se estivesse congelado e tudo o mais não era necessário! Afinal, ele já conseguira fazer com que seus olhares se cruzassem.

Ora, será que tudo assim foi mesmo em vão? Não! Ele conseguiu seu telefone com a recepcionista da escola. “Uma coisa tão simples”, pensou... Mas o amor é assim mesmo, às vezes não nos mostra o caminho mais inteligente.
Passou dias, meses sem ligar, ficou pensando nas loucuras que cometeu, pensando se ele deveria largar mão do comum e se arriscar... Pensando se ao menos ela era legal!

Ela, por sua vez, pensava: “Que maravilha, alguém se interessou por mim! Eu que tenho os pés calejados, sou branca como cera e sem residência fixa”. Ela, que ficara admirada pela atitude do tão charmoso rapaz, negro forte e robusto que balançara seu coração e que agora, antes de entrar em cena, sempre tentava procurá-lo na platéia.

Não. Ele não estava lá. Sem que um soubesse o que o outro pensava, eles pensavam a mesma coisa: Corra! Lá vem a tristeza apontando para todos os lados. Com uma sensação de vazio no peito, por não saberem que na verdade ambos estavam apaixonados. Por não saberem que não estavam lutando sozinhos.

Certo dia, quando ela já estava desacreditada de encontrá-lo, beijá-lo e de que aquilo tudo poderia ser um sonho, ele telefona para ela, sentindo um aperto tímido no peito.
Não disseram muita coisa, mas a sintonia era de como se eles se conhecessem há muito.No dia seguinte, ela acorda com a voz dele na secretária eletrônica cantando: “Bailarina, onde está você, eu vou dançar o iê ie iê. Me liga." Ela correu para atender, mas não deu tempo. Deixou um número.

Encontraram-se no parque. "Não consigo parar de pensar em você. Quero continuar o que ainda não começamos", ele disse olhando fundo. Ela sorriu. Sempre gostou de paradoxos."Te amo", ela diz, mas ele não acredita, mesmo sabendo que ela não mente.
Ela faz declarações de amor com a mesma tranqüilidade que acende um cigarro depois do café.

Aos trinta e cinco anos, um homem já tem opinião formada sobre o que é o amor e ele sabe que uma pessoa capaz de dizer te amo de forma tão natural apenas pensa sentir o que diz.

"Você acha que me ama", ele responde. Ela rodopia o corpo leve, inescrupuloso, e vai embora.
Na esquina da rua se vira e acena para ele, que recua, protegendo-se atrás de uma árvore.
Ela espera alguns segundos, ele reaparece e acena de volta com uma flor. Num gesto caloroso. Ela levanta de leve os ombros, dá meia-volta e dobra a esquina. Ele se senta na grama e sente uma lágrima cair.
Ela pensa: “Ele achava que me conhecia. Dizia que eu pensava que o amava. Acreditava me conhecer mais do que eu mesma. Sabe como é, coisa de homem que acha que já viveu tudo.”

Na época ele preparava uma tese de mestrado sobre o amor. Além de hipócrita era filósofo. Algo sobre manifestações amorosas à luz da sociedade pós-moderna. E ela achava que ele ia ter um bocado de trabalho, pois ali percebeu que ele ia ter que pesquisar muito para desenvolver uma tese convincente. O cheiro dela. É um cheiro que ele não sabe explicar, um cheiro impossível, que ele só sente quando não sente direito, só percebe quando não presta atenção, misturado com cheiro de rosa, incenso, creme hidratante e chiclete de canela, que ela gruda nas costas da mão quando toma suco de beterraba com laranja. "Pra saúde", ela diz, brindando o copo num outro imaginário, e bebe o conteúdo quase de um gole só, de olhos fechados para não sentir o gosto. Abre um sorriso satisfeito, desfaz a careta refletida no vidro do copo, leva a mão à boca e resgata o chiclete ainda úmido.“Como vai João? Ainda com os mesmos pensamentos?” Ele nada responde. Apenas a beija. Mas não um beijo simples. Era o beijo que ela esperava há muito tempo.

Os dois primeiros anos deles juntos foram ótimos. Ele gostava da juventude dela, do seu jeito apressado de encarar as coisas. Nada como ter vinte e um anos."Sinto uma certa pressa", ela diz. "De quê?", ele quer saber, mas ela não sabe responder. Ele gosta de palavras, explicações, e algumas ela não sabe dar. Na verdade, ela já não sabia mais de onde vinha o desejo. Viu que amor não tinha saída e já não conseguia mais esgotar todo o apetite de seu coração.

Ela queria lhe dar o céu e partir. Pensava que não podiam ficar separados. Misturaram-se aos poucos, num enlace perfeito, onde idéias e sentimentos se misturam como num prato raso.

Ela encheu a casa de espelhos, na esperança de que ocupassem os espaços nos quais não conseguia mais circular. Ele já não conhecia mais os caminhos, não era capaz de se distinguir daqueles reflexos, não sabia mais que direção tomar. Sua vida virou um labirinto povoado de fantasmas dos dois. E, quando os aços dos espelhos passaram a ser a única realidade dele, ela foi embora.Hoje é segunda-feira de carnaval. Pierrôs, colombinas, melindrosas, pandeiros e cuícas se misturam na cidade. Faz tempo que ela foi embora e ele ainda sente saudades.

Um fantasma vira aquela mesma esquina ali embaixo há meses e, quanto mais ele se esconde, quanto mais cigarro acende tentando moldar com a fumaça uma outra imagem que não a dela, mais se aflige naquele apartamento incompleto.

O apartamento está em pedaços. Os espelhos aumentam um vazio que parece não ter fim, perpetuam aquele espaço no qual ele se perde e, lá, sentado naquela poltrona, desejando vê-la surgir de dentro deles e dizer que tudo não passou de um inocente pavor.

E ele queria escutar o porquê daquele pavor. Perturbado por nem ao menos ter tido o prazer de uma dança.